Um ano, um momento


 Em A Origem (Inception, 2011) aprendemos uma técnica para descobrir se estamos em um sonho ou não: pergunte-se ‘como cheguei aqui?’ Se você não lembra, provavelmente está sonhando.

Algumas lembranças minhas têm um aspecto de sonho.

Não sei seus contextos exatos, como começaram ou como terminaram. Mas, esse único momento ficou.

Um trecho quebrado de um vídeo, de um filme, rodado incansavelmente, reinterpretado e desgastado com a ação do tempo. E algumas frases parecem, de certa forma, representar todo um período.

— Você precisa escolher um namorado. Como assim, não gosta de ninguém? Você precisa gostar. Todos os meninos querem te namorar. — coleguinha do Jardim II
— Você até que é bonitinha de rosto, mas de corpo a Rafaela é mais. — um ginasial gorducho, quando eu e a Rafaela estávamos na alfabetização.
— Como assim, não sabe o que é horóscopo? São aquelas figurinhas no jornal! — professora rindo muito na primeira série. (Quadrinhos?)
— Essa sua Barbie não é da China nada. Mentirosa! Pintou o cabelo dela de ruivo para enganar a gente. Sua Barbie é daqui como todas as outras! — segunda série. (Era da China mesmo… do camelô, de fato)
— Você não vai poder sair para o recreio, porque não parou um segundo de dar risada! — na terceira série, aprendendo, pela primeira vez, que rir é errado.
— O que você quer?! — quarta série, reação de um menino quando quis mostrar a ele meu desenho dos Cavaleiros do Zodíaco.
— Meu nome não é tia. Não sou velha o suficiente para isso. Vocês precisam me chamar de professora! — a transição repentina da quinta série.
— Deixa eu ler essa porcaria que você escreveu para ver se você não está blasfemando contra Deus, já que não tem respeito com ninguém. — um professor de religião bem nervoso na sexta série.
— Aberração de circo. Ha, ha, ha! — um repetente suado e cheio de espinhas na sétima.
— A Juliana é a menina mais linda da classe. É a mais mulher. — o melhor amigo na oitava série.
— Você tem tanto potencial. Ainda vai desabrochar. — o elogio doloroso de uma senhorinha bem-intencionada no primeiro ano do colegial.
— Por que fica lendo esses livros? Não tem amigos? — segundo colegial.
— É influência da Marilene, sem dúvida. — professoras concluindo que meu repentino mau desempenho no terceiro colegial era obra de uma menina com quem nunca falei. (Na verdade, não queria me formar)
— Vocês são apenas números na máquina do jornalismo. Macacos fariam o trabalho de vocês. Esqueçam o romantismo de Clark Kent e Lois Lane. — primeiro ano da faculdade de jornalismo.
— Vocês são muito jovens. Falta maturidade intelectual. — segundo ano da faculdade de jornalismo.
— Estuda pelo menos mais esse ano, aí você decide o que quer. Não desiste ainda— terceiro ano de jornalismo.
— Essa revista é uma obra-prima e essa sua matéria uma obra-primíssima. — banca do TCC.

É assim que sei que não estou sonhando. Foram momentos como esses que me trouxeram até aqui.


ATENÇÃO: Todos os personagens neste texto podem (ou não) ser fictícios. Qualquer semelhança a pessoas reais, vivas ou mortas, pode (ou não) ser meramente coincidência.